TEXTO PARA REFLEXÃO: “A PIPOCA QUE SOMOS”
A culinária me fascina. De vez em quando até me atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso o que aconteceu.
A pipoca, um milho mirrado, grãos redondos e duros, sempre me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.
A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. A pipoca é o milho mirado, subdesenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu ninguém jamais poderia ter imaginado.
Repentinamente, os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros, quebra-dentes, se transformavam em flores brancas e macias, que até as crianças podiam comer. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica sempre do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem e acham que seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos: a dor.
Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, o pai, perder o emprego ou ficar pobre. Pode ser fogo de dentro: pânico, medo, ansiedade, depressão ou sofrimento, cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso do remédio: apagar o fogo! Sem fogo o sofrimento diminui. Com isso, a possibilidade da grande transformação, também.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro cada vez mais quente, pensa que sua hora chegou: vai morrer. Dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar um destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada para ela. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo a grande transformação acontece: PUM! E ela aparece como uma outra coisa completamente diferente, algo que ela mesma nunca havia sonhado.
Em Minas, piruá é o nome que se dá às mulheres que não conseguem casar. Mas acho que o metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são os milhos de pipoca que se recusam a estourar, como aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito de ser delas. Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida, perde-la-á". A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar milho a vida inteira. Não vão se transformar em flor branca, macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminando o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás, que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Na simbologia cristã, o milagre do milho de pipoca pode ser representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.
(Extraído do livro: “O amor que acende a lua” de Rubem Alves)
Pensamento: “Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas.”
COMENTÁRIO DO GRUPO:
A Psicologia tem sua gênese e prática tradicionalmente voltada a normatização e adaptação do comportamento às regras vigentes e diferentes sociedades. Diante de uma leitura crítica de sua atuação, é uma área de conhecimento que acentuou o individualismo como ferramenta de controle e aplicação de sistemas de disciplina, a serviço da sociedade industrial e capitalista, servindo de coadjuvante aos poderes de dominação e governabilidade dos povos e organização das pessoas.
Ainda que haja tendência de práticas libertadoras a forte herança de normalização permanece, seja nas práticas de sujeição aos modelos de uma “sociedade normal”, seja pelas práticas de caracterização de patologias universalizadas e padronizadas, sob as quais se encaixam os sofrimentos e diferenças consideradas anormais.
E considerando que:
· Se a Psicologia é uma prática institucionalizada de um ramo da ciência ocidental, que busca a homogeneização e o controle por meio de uma subjetividade individualizada;
· Se a vida e a ética, bem como o poder se dá nos encontros, se é necessário portanto um olhar heterogenético da construção da vida e dos sistemas e regimes de verdade;
Questionamos se:
É necessária uma nova prática crítica que seja transgressora da norma, e que semeie um modo questionador das verdades ou da verdade estabelecida, ou cientificamente preconizada?
Seria porventura necessário um espírito anarquista que transversalize o fazer Psi?
É necessária uma epistemologia da desorganização, porém que não seja individualista, pois que se faz no encontro, nasce do encontro da diversidade, se estrutura na pluralidade, tem sua gênese na heterogeneidade, e conserva e afirma das exceções, fragilizando as regras, e que justamente por isso é dinâmica e volátil?
Não precisaria a Psicologia ser anarquista, transgressora e desorganizadora, que rompa a homogeneidade pretendida e afirme o indivíduo, porém, remetendo-o à construção de si e de suas desconfianças de verdade no coletivo, no encontro com o outros, as outras?
Numa linguagem parabólica, figurada:
A Psicologia pode servir como o fogo que aquece a água que está dentro do próprio grão de milho, que por si executa a transformação de seu estado fechado, encapsulado, desagradável para a fruição para um estado de maioridade (o grão no mínimo triplica seu tamanho, seu lugar no mundo), de estética (o grão de milho que nas culturas astecas e mais era considerada uma “gota” do sol, tem agora a cor branca, resultado da união de todas as cores, um símbolo da diversidade. Além disso é agradável ao paladar.) e de subjetivação (cada grão passa pelo mesmo processo – a água evapora em seu interior – porém cada grão forma uma pipoca de diferentes formas, aspectos e tamanhos).